Brasília, 02 de maio de 2025.
Por Rejane Soldani Sobreiro
Diretora Jurídica da FENAGUARDAS
Por muito tempo, tentou-se sustentar no Brasil a ideia de que o policiamento ostensivo, aquele exercido com presença visível, fardada e preventiva, seria exclusividade das polícias militares estaduais. Essa narrativa, ainda presente no discurso de alguns setores mais conservadores das forças militares, não apenas distorce o ordenamento jurídico atual, como ignora a evolução democrática do país e o reconhecimento recente, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da pluralidade funcional no campo da segurança pública.
O argumento mais recorrente para sustentar tal exclusividade está baseado nos Decretos nsº 667 de 1969 e 88.777, de 1983, editados em pleno regime militar. Esses decretos, que aprovam o Regulamento das Polícias Militares, associa o policiamento ostensivo à atuação das PMs. Contudo, é fundamental lembrar que esse dispositivo foi editado antes da promulgação da Constituição de 1988, ou seja, pertence a uma ordem jurídica autoritária e centralizadora, superada pelo atual Estado Democrático de Direito. Além disso, tais normas são anteriores a Constituição de 1988, que inaugurou a incorporação dos municípios como entes federados, conferindo-lhes autonomia política, administrativa e financeira, estabelecendo um marco para o desenvolvimento local.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 144, de fato prevê que às Polícias Militares cabe “a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”. No entanto, isso não significa exclusividade. A redação do dispositivo não confere exclusividade a essas funções, diferentemente do que ocorre quando o legislador constituinte deseja estabelecer prerrogativas exclusivas. Exemplo disso encontra-se no inciso IV do §1º do próprio art. 144, que dispõe expressamente que à Polícia Federal cabe, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. A ausência de menção semelhante no caso do policiamento ostensivo demonstra que não houve, por parte do constituinte, a intenção de atribuí-lo exclusivamente às Polícias Militares.
Além disso, é necessário observar que o papel das Polícias Militares vai muito além do simples policiamento ostensivo. Essa função é apenas uma entre diversas atribuições dessas corporações. A própria Constituição trata essas instituições como “polícias” de natureza ostensiva, e não como responsáveis exclusivamente pelo “policiamento ostensivo”. Isso significa que sua atuação deve ser contínua, ampla e, muitas vezes, residual, atuando em substituição às demais forças quando estas se mostram ausentes ou inoperantes. Historicamente, as PMs já desempenharam funções típicas da Polícia Civil, da Polícia Federal e, inclusive, das Guardas Municipais, especialmente em localidades com déficit de efetivo ou estrutura operacional.
Esse entendimento foi recentemente ratificado pela mais alta Corte do país. No julgamento do Tema 656 da Repercussão Geral (RE 608.588), o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que é constitucional o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, incluindo o policiamento ostensivo e comunitário. A decisão consagrou o papel já desempenhado pelas Guardas como polícias municipais de fato, mesmo que não ainda nomeadas assim na Constituição, reconhecendo sua relevância no sistema de segurança pública dos municípios.
Além disso, a Lei nº 14.751, de 12 de dezembro de 2023, que estabelece a nova Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, aprovada sob o atual regime democrático e com ampla participação parlamentar, não atribui ao policiamento ostensivo o caráter de exclusividade das PMs. Essa omissão legislativa é eloquente e revela que nem mesmo o legislador contemporâneo sustenta tal tese de monopólio.
O próprio Estado brasileiro, por meio de outras instituições, já pratica há anos o policiamento ostensivo. A Polícia Rodoviária Federal, vinculada ao Ministério da Justiça, realiza patrulhamento ostensivo preventivo nas rodovias federais. A Força Nacional de Segurança Pública, criada pela Lei nº 11.473/2007, atua com visibilidade e ostensividade, expressamente previstas em sua legislação, em apoio a estados e municípios em situações de crise. Importante observar que a Força Nacional é composta não apenas por militares estaduais, mas também por agentes civis da segurança pública.
E o que dizer das Guardas Municipais, cuja atuação é respaldada pela Lei Federal nº 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais)? Essa legislação estabelece, de forma clara, que compete às Guardas o patrulhamento preventivo, o uso proporcional da força e a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, tudo isso por meio de uma atuação visível e comunitária nos espaços públicos urbanos. Em outras palavras, trata-se de policiamento ostensivo por excelência.
Portanto, é preciso romper com discursos ultrapassados e reconhecer que o policiamento ostensivo não é uma propriedade institucional, mas uma necessidade coletiva da sociedade. O modelo federativo brasileiro, ao distribuir competências entre União, Estados e Municípios, favorece uma atuação cooperativa e coordenada, e não corporativista ou excludente.
Tentar concentrar essa função em apenas uma instituição é ignorar a realidade concreta das ruas, onde a população clama por mais presença, mais prevenção e mais proteção. Não importa o nome no uniforme, mas sim o serviço prestado. E, felizmente, a Constituição Federal, a legislação ordinária e o Supremo Tribunal Federal estão do lado da cidadania.
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